10/06/2008

Às vezes não sei...

Numa rua escura, de madrugada, as nuvens encobrem o luar e os candeeiros funcionam apenas um em cada seis segundos. A rua é estreita e apinhada de carros. No cimo, num 3º andar de um dos prédios está um homem, parece jovem mas a pobre luz não lhe revela as feições nem no segundo de iluminação. Está sentado no parapeito da janela, encostado a um dos lados, uma perna baloiçando em pleno ar. Apesar do céu turvo parece contemplar o local onde estaria a lua se visível, mesmo por cima da ponte que faz a travessia entre cidades. Apesar do frio o homem veste apenas calções e ali permanece enquanto fuma ritmadamente, de perna sempre a baloiçar. Se atentarmos, no vazio desta noite fria, ouvimos uns acordes de Jobim.

“Às vezes não sei… Que faço aqui. Detesto sentir isto, não o posso partilhar com ninguém, «que cliché!» diriam certamente. Ninguém gosta de coitados. Não me sinto coitado, não tenho carro, casa ou namorada, mas considero isso temporário. Tenho bons amigos, muitos conhecidos, mas… De há uns anos para cá onde foram os meus objectivos? Aqueles que eram os de amanhã. Acordar e fazer o que se quer, tem ou deve fazer. Agora acordo consoante o dia e as tarefas, e sempre como se viesse de outra galáxia, como se tivesse sido embrulhado num casulo amorfo, que me transformou num qualquer ser que embora tenha o meu retrato me esvaziou as entranhas. Sinto-me oco. Que me interessa o dia da semana, do mês ou o que vou almoçar amanhã. Não estou a viver, sou só o ponteiro do relógio, um compasso que mede o que os outros imaginam. Só vivo através do mundo agora. Só me sinto ligeiramente ser quando sou espelho de algum sentimento que não o inócuo eu.
A questão é: será que quero não viver assim, ou não viver, ponto?”

O dia segue já a meio em tons de preguiça, frio e cinzento. O jovem homem surge numa esquina, e desce agora uma longa escadaria até chegar a uma paragem de autocarro vazia. A rua está um turbilhão com obras, trânsito e polícias de trânsito a passar multas por mau estacionamento. A rua, que na verdade é uma avenida, e apesar do céu antipático, deixa que algumas folhas amareladas a sobrevoem distraindo os interessados pelo monótono mundo real.
Lá em baixo vê-se o que parece um fresco da cidade com o rio, as pessoas, os carros e a ponte que desaparece sob o manto sebastianista. Surge o autocarro no momento em que no mp3 do jovem começa uma nova música.

“Mais um dia, por esta janela traseira já me habituei a ser quem vejo, a criar uma ficção para quase todos os que vejo. Pela forma como olham, tocam, andam, falam. Pela forma de vestir, pelo cabelo e pelo cheiro. Tudo para mim são pistas que eu vou analisando enquanto crio um universo paralelo para eles. Por vezes interagem comigo, imagino-os como futuros grandes amigos, patrões, filhos e até amantes. São as marionetas que a minha imaginação se encarrega de atar num enredo duvidoso e parcial.
Hoje não vejo nada, ninguém. Observo a minha mão e acho-a tão bela como qualquer outro feito da Natureza. Parece vestir uma pele, uma espécie de cabedal invisível que lhe confere um relevo complexo. Por segundos tento descobrir um mapa, um qualquer padrão, mas nada. Fecho o punho. Tiro da mala o caderno e o lápis. Escrevo num impulso seis ou sete linhas num verso que não rima. Leio e tento perceber-me… Falo de amor, de vertigem, do deserto e de morte. Digo no fim: “Que por fim a morte está perto”. Um arrepio corre-me espinha abaixo ao ler a última linha. Sorrio relaxado para o mundo.”


Numa esplanada amarelada, com o sol a despedir-se, estão cerca de duas dezenas de pessoas. São na sua maioria jovens e estão dispostos em quatro mesas diferentes, embora duas coabitem. É um espaço amplo com três árvores a separar as mesas e cadeiras de um parque de estacionamento. À volta existe um pavilhão desportivo, um ginásio e salas de aula. É, de facto, uma universidade mas isso pouco importa para o jovem que não ouve os colegas a seu lado. Sentado ao meio da mesa, observa o feixe de luz surreal que atravessa uma outra mesa. Observa sobretudo o que é invisível, pois observa com os quatro sentidos: a visão, o olfacto, a audição e a imaginação.

“Sinto que podia vir aqui apenas para isto, que viria aqui confraternizar como a qualquer outro lado, só que aqui a luz é bestial. Ela é também bestial, mas será mesmo “assim tão” bestial para compreender um acto ridiculamente nobre e romântico? Será hoje o dia em que lhe darei algo e direi: desculpa a invasão mas isto foi escrito por ti, pela tua luz, pelos teus olhos… Por esta altura já estaria tudo a rir à gargalhada. De que forma seria uma abordagem igualmente fiel mas moderna ou arrojada?
Ela é tão divinamente normal que terei de escrever algo hoje. Hoje é o dia, sinto-o."


Destino ou partida?
Não te creio o meu destino nem te vejo como um ponto de partida.
És a minha metáfora preferida,
Num papel chamado vida.

Papel reciclado que já foi paixão,
Que vive saudade saudando o chão.

De impertinentes planos te percorro o corpo
Com as mãos tementes te logro um gesto
Do belo que mais belo há

Conheci-te com meus braços estendidos
Tão infinitos como as nossas sombras
Aprendi-te e à tua música diária como
Ao crepitar de uma fogueira atrás de uma chávena de café

Ondula o dia na sua gravidade pesada
Que a ouro se paga de seriedade
Flutuamos os dois só para descobrir mais tarde
Que de âncoras fomos munidos como por flores impressionados.

"Não é um poema mas é verdade e se voei por um segundo que fosse, foi por tua causa, se hoje esqueci o que de mau me invade foi graças a uma luz de final de tarde e ao teu perfil de mulher, de musa real. Por isso agradeço-te pedindo-te que fiques com isto.”

A rapariga foi abordada pelo rapaz, aceitou a folha, sem saber o que fazer. De forma atrapalhada apresentou-se. O rapaz disse o nome e despediu-se, dizendo-lhe que não era nenhum louco obsessivo, que apenas gostava de observar. Que não era tímido, embora soubesse respeitar.
Desceu as escadas rapidamente sem olhar para os seus colegas, dos quais já se havia despedido, caminhava rapidamente enquanto apertava o casaco. Um frio gélido confirmava a ausência do sol, mas não havia frio para o jovem. Havia um tremor por todo o corpo, uma ansiedade infantil, um gosto a café com leite, um cheiro a Natal. Devido ao vento frio, lágrimas foram escorrendo pela sua face sem esconder o sorriso dos seus olhos. O mundo era um barulho silencioso à sua volta e os seus pensamentos gritos a plenos pulmões. O cheiro do jardim que atravessou era de humidade, de terra molhada.